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LEÕES DE TSAVO - A HISTÓRIA POR TRÁS DO MITO


"Mesmo hoje, se você ousar encarar os olhos deles, sentirá medo"


JOHN PATTERSON  E OS ACONTECIMENTOS

Em 1898, os britânicos decidiram construir uma ferrovia na África Oriental. Esta ferrovia iria se estender de Mombasa na costa do atual Quênia até o Lago Victoria, e dali seguiria até o país vizinho, Uganda. Chamada de Uganda Railroad o empreendimento logo recebeu um apelido: "Ferrovia dos Lunáticos". Muitos diziam que ela virtualmente ligava "o nada, a lugar nenhum", e sua construção era um verdadeiro pesadelo, dificultado imensamente pelas condições do solo, do clima e do relevo.

Apesar disso, a construção da ferrovia tinha uma série de propósitos legítimos. Naquela época, a única rota para o interior do continente africano tinha de ser feita a pé. Havia muitas mercadorias agrícolas que poderiam ser transportadas por meio de uma linha férrea do interior para a costa a fim de ser em seguida distribuída para todo o mundo. Além disso, levar produtos (e comércio) ao interior da África, geraria um novo mercado consumidor de todo tipo de produto. 

Um transporte ligando a costa do Quênia ao interior também permitiria uma colonização mais eficiente. Missionários religiosos estavam interessados em levar a "palavra de Deus" aos povos do interior e as dificuldades da jornada por terra eram um constante empecilho. Finalmente, havia o incômodo problema do tráfico de escravos. Muitos acreditavam que a chegada da ferrovia encorajaria pessoas ligadas a captura de escravos a buscar outras atividades.


A construção da ferrovia permanece como um dos maiores feitos de engenharia do final do século XIX. Seus  933 km de trilhos cruzam o Vale do Great Rift, diversos rios, e alguns dos terrenos mais inóspitos que se possa imaginar. A construção se iniciou em 1896, e chegou a Nairobi em 1899. 

Boa parte da mão de obra empregada no empreendimento foi suprida por operários vindos da Índia, colônia sobre o controle dos britânicos. Esses trabalhadores, comumente chamados de "Coolies" a princípio não se saíram muito bem na função. Dizem que a vasta maioria dos operários (mais de 60%, segundo alguns historiadores) acabaram sucumbindo a doenças e acidentes. A maioria dos que sobreviveram acabaram se estabelecendo no Quênia, formando uma expressiva comunidade de indianos que existe até hoje na atual África ocidental.

De fato, esta ferrovia continua em operação, ainda que tenha perdido muito do esplendor do passado. Há passeios turísticos que levam pessoas de todo mundo através da "Ferrovia dos Lunáticos". Mas, a incrível estória que é foco desse artigo trata de um pequeno trecho do monumental projeto: a construção de uma ponte elevada cruzando o Rio Tsavo (Rio da Morte), a cerca de 212 km a noroeste de Mombasa.


O ano era 1898. O projeto de colocação dos trilhos da Uganda Railway havia chegado, e avançado até o rio Tsavo em meados de fevereiro. Uma ponte temporária foi erguida sobre o rio para que a construção de uma ponte definitiva pudesse ser realizada da maneira mais rápida possível. O trabalho era responsabilidade do Coronel John Henry Patterson. A ponte deveria ter aproximadamente trinta metros de comprimento, era um projeto ambicioso, de suma importância.

Patterson, era um homem jovem e idealista com pouco mais de trinta anos, que havia trabalhado na Índia na supervisão de alguns projetos de engenharia civil. Há alguns que duvidam se Patterson era realmente o arquiteto responsável pelo desenho da ponte, citando a pouca experiência dele no assunto e a ausência de documentos com o seu nome. Evidências, no entanto, sustentam que se ele não era o arquiteto, Patterson tinha uma importante participação no projeto.

De qualquer maneira, ele chegou a Mombasa em primeiro de março de 1898, sabendo que sua função era construir uma ponte em um trecho da Uganda Railway. Uma semana depois, ele recebeu ordens de seguir para Tsavo, e supervisionar a obra.


O trabalho começou assim que ele chegou ao local. Um dos maiores desafios na construção de uma ponte dessa natureza é encontrar pedras adequadas para estabelecer as fundações. O material foi encontrado a cerca de três milhas, e foi necessário colocar em funcionamento um ramal secundário de trem para trazer o material até Tsavo. As fundações demandaram um bom trabalho, sendo necessário construir uma pequena represa que possibilitasse escavar o leito do rio. Apesar das dificuldades, o trabalho progredia dentro do cronograma.

Poucos meses depois da chegada do Coronel Patterson, estranhos rumores começaram a circular entre os trabalhadores. Alguns operários haviam simplesmente desaparecido após se embrenhar na mata para realizar alguma tarefa. Na ocasião chegou-se a cogitar que leões podiam ser responsáveis, mas Partterson não acreditou nos boatos. Mas a despeito disso, homens continuaram desaparecendo, o que forçou o Coronel a investigar mais a fundo o caso.

Uma pequena expedição liderada por Patterson descobriu os restos horrivelmente mutilados de dois operários em uma área isolada a apenas 800 metros do acampamento. Os rastros indicavam que não apenas um, mas dois grandes leões, eram os responsáveis pelas mortes. Nessa mesma expedição, um dos grandes felinos foi visto, mas as tentativas de alvejá-lo falharam. "O animal simplesmente desapareceu, como se fosse uma sombra entrando na escuridão" escreveu o Coronel.


Patterson ordenou que fossem construídas bomas (cercas de espinhos tradicionalmente erguidas por tribos africanas para manter predadores afastados) ao redor dos acampamentos, e que tochas fossem acesas toda noite para afastar os leões. Mas as medidas não surtiram efeito. Os leões literalmente ignoraram os obstáculos e fizeram mais uma vítima, dessa vez um homem que transportava água sendo atacado a pouco mais de 300 metros do acampamento.

O verdadeiro pânico se instalou quando, certa noite, uma das feras rastejou por baixo da boma e entrou numa das tendas onde catorze trabalhadores dormiam. A fera derrubou a tenda, um dos homens foi morto e outro operário indiano gravemente ferido no ombro com uma mordida. A fera conseguiu escapar arrastando sua presa para fora do acampamento. Alguns homens chegaram a testemunhar o enorme felino arrastando o corpo do trabalhador aos gritos, o que causou enorme comoção. 

O moral despencou e o medo se espalhou ao longo dos acampamentos. Patterson determinou que fossem construídas casamatas com quatro metros de altura, guarnecidas de iluminação, onde atiradores ficariam a postos toda noite. Mais bomas foram construídas para restringir a aproximação das feras e armadilhas foram espalhadas por caçadores tribais contratados junto às tribos.


Mas as medidas não surtiram efeito. O mesmo leão atacou a tenda hospitalar do acampamento, onde o operário que havia sido ferido estava sendo tratado. A fera matou o sujeito e feriu outros dois homens até ser espantada com tiros. Para muitos, o leão havia retornado para terminar o seu trabalho. Ninguém estava seguro! Os supersticiosos diziam que a fera era, na verdade, um Espírito da Morte, que uma vez tendo marcado sua vítima, retornaria quantas vezes fosse necessário para levá-la. Para outros, a construção estava amaldiçoada e os homens brancos não eram bem vindos a Tsavo.

Foi decidido que o melhor seria mudar a tenda hospitalar de lugar. Ela foi movida para o centro do acampamento onde havia relativa segurança. Mas logo na noite seguinte, um leão atacou a tenda e matou um enfermeiro. O pobre coitado foi arrastado para a selva e a equipe de caçadores que seguiu os rastros encontrou a cabeça do homem e a parte inferior de seu corpo na mata. A tenda hospitalar foi movida mais uma vez, uma cerca de espinhos ainda maior e mais reforçada foi erguida ao redor dela como proteção.

Em 23 de abril, Patterson colocou em ação um plano para abater os leões. Ele determinou que um vagão de trem fosse colocado em uma área fora do campo; um bode e uma cabra foram então amarrados na entrada como isca. Patterson e o médico ficaram no alto do vagão de guarda toda noite, armados com rifles. A ideia era que quando o leão entrasse na área um deles fechasse passagem prendendo o animal. A paciência dos dois foi recompensada quando um dos leões adentrou a armadilha. 


O médico, no entanto, se antecipou e disparou, mas o tiro passou longe do alvo. Patterson imediatamente fechou a armadilha prendendo a fera dentro da boma. Ele conseguiu fazer um disparo e atingiu de raspão a fera - na ocasião o coronel contou ter acertado a boca do animal e arrancado um de seus dentes, o que se descobriu ser verdade mais tarde. O felino soltou um rosnado assustador "o tipo de som desafiador de uma fera acuada" e saltou por cima da boma que tinha mais de 3 metros.

Depois disso, as coisas saíram de controle. Os trabalhadores esperavam que o Coronel matasse a fera e quando ele falhou muitos se desesperaram. A cada dia mais operários desertavam, alguns roubavam suprimentos e equipamento antes de fugir. O trabalho também não progredia. Com os nervos à flor da pele, Patterson se desentendeu com um dos capatazes, um homem que segundo dizem usava um chicote para forçar os operários a trabalhar. Patterson chegou a trocar socos com o homem após flagrá-lo usando a chibata. O incidente correu pelo acampamento em diferentes versões, algumas afirmando que o Coronel havia agredido o sujeito sem motivo.

A insatisfação chegou a tal ponto que um grupo de trabalhadores decidiu que a culpa de toda a tragédia residia nos ingleses, sobretudo Patterson. A única forma de apaziguar a fúria dos animais era matar o maior número possível de estrangeiros e entregar o Coronel às feras. O plano era capturar o Coronel quando ele estivesse saindo de seu escritório e levá-lo até a floresta, onde planejavam amarrá-lo a uma árvore.


Felizmente, a informação chegou a um de seus homens de confiança de Patterson que o avisou a tempo de que um atentado estava sendo planejado. Apesar de tomar medidas para se proteger, o Coronel chegou a ser emboscado por um bando usando máscaras tribais, armados com facões e lanças. Por pouco ele conseguiu escapar do ataque, alvejando mortalmente um dos assassinos com seu revólver Webley  e capturando outros dois. A polícia de Mombassa interrogou os prisioneiros e estes entregaram os chefes do complô.

Após o incidente na armadilha do vagão de trem, os leões desapareceram por alguns meses e uma aparente normalidade retornou ao canteiro de obra. Mais trabalhadores foram contratados e o serviço progredia. Durante esse tempo foram tomadas providências para manter a segurança, cercas, casamatas, torres de vigilância e uma patrulha de homens armados vigiava o perímetro. Essa foi apenas uma calmaria antes da tempestade de sangue que seguiria.

No fim de setembro os leões retornaram. Um operário desapareceu após se afastar sozinho além da área protegida. Um dos guardas disse ter visto a fera, mas não teve tempo de acertar um tiro. O rosnado das feras podia ser ouvido fora da boma, mas as expedições de caça, comandadas por Patterson não encontravam nada. Mesmo assim o Coronel fazia essas incursões, acompanhado de seus rastreadores tribais toda noite. No acampamento, os homens rezavam para afastar os espíritos, a "Sombra e a Escuridão" como passaram a ser chamados.


Em 20 de outubro, enquanto o grupo estava longe, as feras atacaram o acampamento. Os dois leões de uma só vez apareceram "como por magia", entre as barracas comunais. O primeiro homem foi morto em silêncio, mas outro despertou a tempo de ver a fera se aproximando e deu o alerta. Houve correria e em meio a confusão um bando de coolies escalaram uma árvore onde esperavam escapar dos leões. 

Mas a árvore não aguentou o peso e partiu derrubando todos que estavam no alto. Os leões não se importaram e atacaram ferozmente. No fim haviam oito vítimas e os leões sumiram tão rápido quanto haviam surgido, sem deixar vestígios. Os guardas foram acusados de ter relaxado na vigilância e quando Patterson chegou se deparou com o caos que havia se formado. 

Os caçadores que o acompanharam até a selva, entre os quais um respeitado caçador da tribo Massai, desertaram, dizendo que aqueles não eram animais normais: "São devoradores de homens, feras que caçam e matam por prazer, não para se alimentar! Eles tomaram o gosto pela caça e pela carne dos homens e nada mais vai satisfazê-los".


Os leões se tornaram cada vez mais ousados. Certa noite, enquanto Patterson estava na selva procurando por eles, um dos poucos caçadores que ainda restava sumiu sem deixar vestígios. Eles o procuraram até o amanhecer sem encontrar nada. Ao tomar o caminho de volta para o acampamento, descobriram seu corpo mutilado à beira da estrada. 

Era como se os animais de alguma forma soubessem que Patterson era seu inimigo e estivessem fazendo um convite para que ele tentasse agarrá-los. "Leões não se comportam dessa maneira" escreveu Patterson em tom de desabafo a um amigo, "eles sequer comeram o pobre diabo, simplesmente o mataram e abandonaram seu corpo onde nós poderíamos encontrá-lo no caminho de volta".

Em primeiro de dezembro, os trabalhadores decidiram parar de trabalhar. Um deles comunicou ao Coronel que eles não seriam mais "comida para leões ou demônios". Assim que o ultimato foi entregue, os operários deitaram na frente de um trem e quando este parou escalaram seu teto e ocuparam qualquer lugar vago. O projeto de construção foi interrompido. Apenas um pequeno número de operários decidiu ficar para trás, mesmo assim passaram a dormir no alto de árvores, nas caixas d’água ou em fossos escavados no chão cobertos de toras de madeira.   


Em três de dezembro, um supervisor da companhia chegou a Tsavo para avaliar a situação. "Era como adentrar uma cidade fantasma, os homens estavam apavorados, o medo em seus olhos era perceptível" escreveu em seu relatório. Ele trouxe consigo vinte homens armados com espingardas e rifles para auxiliar na caçada. Animado com a ajuda, Patterson tentou usar novamente o vagão de trem como armadilha. 

Ele mandou que fossem soldadas barras de ferro no fundo do vagão onde os homens armados aguardariam os leões quando estes viessem atrás de uma isca colocada na entrada. Um mecanismo fecharia a porta para que o leão ficasse preso no interior do compartimento. 

O plano funcionou, mas não da maneira como o Coronel esperava. Um dos leões entrou no compartimento e a porta barrou a sua fuga, mas os três homens atrás da barra ficaram tão aterrorizados diante da fera que não conseguiram acertar um único disparo. Mais de quinze tiros foram disparados no pequeno compartimento e nenhum deles chegou a ferir a besta. Por fim, o leão conseguiu escapar derrubando a porta.


O episódio reforçou a aura sobrenatural sobre as feras. Os homens juravam que algo protegia os leões, uma força maligna, que impedia que os animais fossem atingidos, mesmo por disparos feitos à queima-roupa. Um dos atiradores envolvidos teria se suicidado dias depois saltando do alto da ponte em construção para o rio turbulento. Logo, o supervisor e os homens partiram, sem oferecer uma solução para o caso. Patterson estava sozinho novamente.

Os dias seguintes foram de apreensão. Com menos presas, os leões sem dúvida seriam atraídos para o acampamento. Os homens queimavam grandes fogueiras durante a noite para manter os felinos afastados e jamais se afastavam sozinhos. Patterson entregou uma arma para cada grupo de cinco homens e disse que deveriam atirar ao primeiro sinal de perigo. Em pelo menos três oportunidades os leões se aproximaram do acampamento, em uma delas chegaram a entrar nas tendas vazias. O Coronel chegou a relatar em seu diário que as feras estavam próximas o bastante para ele ouvi-las rondando do outro lado da boma.


A MORTE DO PRIMEIRO LEÃO 

Patterson teve outra ideia, mandou construir uma plataforma sobre quatro postes de madeira na entrada do acampamento. Esta plataforma, chamada machan, era usada por caçadores indianos para matar tigres e servia como uma árvore artificial para esconder o caçador. Para anular o faro dos animais, o coronel ordenou que três cabras fossem mortas e o sangue espalhado com as carcaças aos pés do machan. E lá ele ficou acompanhado de um ajudante que mantinha três rifles de cano duplo ao alcance das mãos.

Na terceira noite de vigília, Patterson ouviu gravetos se quebrando e detectou movimento. Um dos leões estava se aproximando, finalmente atraído pelo cheiro de carne. Antes que pudesse apontar a arma na direção da fera, ela saltou contra um dos postes de madeira e abalou a plataforma. Patterson manteve a compostura e conseguiu fazer mira alvejando o leão com um tiro na área do ombro. A fera rosnou e se embrenhou nos arbustos. O coronel continuou ouvindo os rosnados e deu mais cinco tiros. Os rosnados continuaram até parar de vez. Pela manhã ele e o ajudante desceram e encontraram o devorador de homens morto.

A notícia se espalhou rapidamente e uma comemoração iniciou. A carcaça do leão foi levada para o acampamento. Era um macho sem juba, 2,94 m da ponta do focinho até o rabo. O leão havia sido alvejado duas vezes - um tiro no ombro na altura do coração (provavelmente o primeiro), e outro na pata traseira esquerda. Foi necessário o esforço combinado de oito homens para carregá-lo até o campo.

Houve paz por alguns dias, até que a comitiva do supervisor da ferrovia, que veio ver o leão abatido, foi atacada pelo animal que restava. Ninguém foi morto ou ferido, mas o grupo teve de fugir às pressas. A lembrança do segundo leão fez com que Patterson reiniciasse a vigília. A fera estava acuada e pela primeira vez, caçava sozinha. Quem sabe do que ela seria capaz.


A MORTE DO SEGUNDO LEÃO

Por sorte, o primeiro leão morto era o maior matador de pessoas, e Patterson não relata em seu livro novas mortes. Repetindo a estratégia, ele se colocou no alto do machan e ficou de guarda esperando o animal. A cada noite uma cabra era morta e colocada na posição. "O fedor de carne putrefata e sangue era insuportável" relatou o coronel.

Finalmente, o felino resolveu aparecer. Não na machan, mas no acampamento. Tiros alertaram o Coronel de que a fera estava próxima e os homens disseram que ele havia sido visto espreitando e que havia matado um dos bodes. Patterson juntou os homens e eles saíram imediatamente em busca da fera, seguindo uma trilha de sangue. Embrenhados na floresta, o grupo conseguiu encontrar o leão, mas o animal avançou contra o bando, ferindo um dos homens. Um tiro disparado, no entanto, o espantou, tendo supostamente acertado de raspão.

Patterson retornou ao alto da machan, camuflada agora com grandes folhas e passou a noite de natal de guarda. Na madrugada de 27 de dezembro, enquanto cochilava, foi acordado pelo ajudante que percebera um movimento. O segundo devorador estava espreitando por perto. Ele conseguiu divisar o enorme felino   e apontou o rifle com paciência. Quando o leão estava a 10 metros, disparou. O tiro acertou, mas não foi preciso o suficiente para derrubá-lo. O coronel pressionou o gatilho mais três vezes enquanto o leão tentava fugir, mais uma bala atingiu o alvo.


Confiante de que o animal estava ferido, o Coronel e mais três rastreadores saíram em perseguição. Os rastros de sangue eram fáceis de seguir. À cerca de um quarto de milha adiante, eles o encontraram. Ele estava escondido na grama alta, rosnando para os homens com os dentes à mostra. O ferimento o deixava ainda mais arisco e imprevisível. Patterson mirou cuidadosamente e disparou. O leão se ergueu da posição e avançou rugindo bravamente com toda energia que restava. 

O coronel estendeu a mão para apanhar outro rifle e descobriu que o ajudante havia corrido para uma árvore. O coronel conseguiu retroceder o suficiente para fazer um segundo disparo, algo que jamais seria possível, se o primeiro não tivesse atingido o animal. Largando o rifle, ele escalou a árvore para se proteger e lá de cima atirou novamente, dessa vez com uma carabina. O devorador enfim tombou.    

Tolamente, Patterson desceu da árvore. Para sua surpresa, o leão avançou novamente! Um tiro no peito e outro na cabeça finalmente derrubaram o animal. Mesmo assim, o leão continuou mordendo selvagemente um pedaço de madeira até finalmente morrer.


No filme, além de muitas outras alterações, os roteiristas optaram por uma versão “politicamente correta”: o ajudante negro, Mahina, não foge. Pelo contrário, ele vence seu medo dos leões e corre corajosamente para ajudar Patterson em dificuldades.

Patterson teve de conter os rastreadores para que eles não fizessem o leão em pedaços. "Eles acreditavam que ele iria se levantar mais uma vez e que não morreria até que seu coração fosse arrancado" contou em sua biografia. Finalmente os homens se acalmaram e um deles correu para o acampamento a fim de trazer ajuda para carregar a fera que só foi vencida após receber seis tiros. Ele também tinha um ferimento antigo no flanco. 

O leão, um macho sem juba, media 2,89 m, da ponta do focinho até a calda. Décadas mais tarde, a caverna que servia de covil para os felinos foi descoberta, repleta de ossos humanos, evidenciando que os devoradores haviam feito muitas outras vítimas. O número total nunca foi determinado, mas uma estimativa de mais de cem está dentro da realidade. O comportamento incomum e agressivo que até hoje intriga estudiosos do mundo animal que jamais encontraram caso semelhante.


Como em um conto de fadas, a estória teve um final feliz. Os trabalhadores retornaram e concluíram a construção da ponte sobre o Rio Tsavo. Em 30 de janeiro de 1899, o Coronel John H. Patterson recebeu uma bacia de prata presenteada pelos trabalhadores em agradecimento por sua bravura e determinação. No dia seguinte a inauguração da ponte, uma tempestade como nenhuma outra caiu sobre Nairobi, como se a água servisse para lavar o sangue deixado nos trilhos.

Patterson partiu da África no final daquele ano. Mas ele retornou em 1906, e viveu muitos anos como guia de safári. Durante esse tempo ele escreveu o livro "Os devoradores de homens de Tsavo", que se tornou um grande sucesso. 

Em 1924, ele vendeu as peles e crânios dos leões para o Museu de História Natural de Chicago, Illinois. Os dois animais foram reconstruídos e colocados em exposição a partir de 1928. 

Eles estão lá até hoje.


APÓS OS EVENTOS

Em 1906, John Patterson voltou para a área de Tsavo para uma viagem de caça. Durante a viagem, ele atirou em um elande, sobre o qual anotou que possuía características diferentes dos elandes da África Austral, onde a espécie foi identificada pela primeira vez. No regresso a Inglaterra, Patterson trouxe a cabeça do elande, que foi examinada por R. Lydekker, um membro do corpo docente do Museu Britânico. Lydekker identificou o troféu-de-caça de Patterson como uma nova subespécie de elande, que ele chamou de Taurotragus oryx pattersonianius.

De 1907 até 1909, Patterson foi diretor-chefe do Exército na África Oriental, uma experiência que relata em seu segundo livro, In the Grip of Nyika (1909). Infelizmente, durante uma caça num safári com um companheiro oficial do exército britânico, o cabo Audley Blyth e sua esposa Ethel, sua reputação foi manchada pela misteriosa morte do cabo Blyth, devido a um ferimento de bala (Possível suicídio). 


Testemunhas confirmaram que Patterson não estava na barraca de Blyth, quando o tiroteio aconteceu, e que era de fato a mulher de Blyth que estava com ele no momento. Patterson teve que enterrar Blyth no deserto e, em seguida, para a surpresa de todos, insistiu em continuar a expedição, em vez de regressar ao posto mais próximo para relatar o incidente. 

Pouco depois, Patterson voltou para a Inglaterra com a Sra. Blyth em meio a rumores de assassinato e um caso, e embora ele nunca foi oficialmente acusado ou condenado, este incidente iria segui-lo por muitos anos depois, mais notavelmente no filme The Affair Macomber (1947), que foi baseado na adaptação de Ernest Hemingway do incidente.

Em última análise, Patterson passou a servir na Segunda Guerra dos Bôeres e Primeira Guerra Mundial. Embora ele próprio era um Protestante, tornou-se uma figura importante no sionismo como o comandante de ambas as Zion Mule Corp e do Batalhão Real de Fuzileiros (também conhecido como Legião Judaica do Exército Britânico) na Primeira Guerra Mundial, que serviria como a fundação da Força de Defesa Israelense décadas mais tarde. Foi promovido ao posto de pleno coronel, em 1917, e em 1920 aposentou-se do Exército Britânico após 35 anos de serviço. 


Seus dois últimos livros, Com os Sionistas em Gallipoli (1916) e Com os judeus na Palestina (1922) são baseados em suas experiências durante esses tempos. Após sua carreira militar, Patterson continuou o seu apoio ao sionismo como um forte defensor para estabelecer um estado judeu separado no Oriente Médio, o que se tornou uma realidade com a independência de Israel em 14 de maio de 1948, menos de um ano após sua morte.

Patterson e sua esposa, Frances ("Francie") Helena, viveram alguns anos em uma casa modesta em La Jolla, Califórnia. Eventualmente, com a sua esposa que precisava de cuidados regulares e sua própria saúde em declínio, ele passou a residir na casa de sua amiga Marion Travis em Bel Air, na Califórnia, onde ele acabou por morrer durante seu sono aos oitenta anos. Sua esposa faleceria seis semanas mais tarde em um lar de idosos em San Diego. O corpo de Patterson foi cremado e suas cinzas foram enterradas em um cemitério judeu em Los Angeles.


ANÁLISE DOS ACONTECIMENTOS E COMPARAÇÕES COM O FILME

O estudo de Yeakel e sua equipe é bastante complexo, e se baseou na análise das proporções relativas de isótopos estáveis de carbono e nitrogênio no colágeno de ossos e dentes, e na queratina dos pelos. Para isso usou amostras de tecidos dos dois leões, de herbívoros diversos e leões da mesma região, e de humanos. Como os tecidos se regeneram em velocidades diferentes, pode-se inclusive determinar a dieta média durante a vida toda (colágeno de ossos e dentes) e nos últimos meses ou semanas de vida (queratina dos pelos). 

Para os leões atuais, a análise indicou uma dieta exclusiva de herbívoros (grazers). O leão FMNH 23969 apresentou um resultado não muito diferente dos leões atuais, mas o outro (FMNH 23970), nos últimos meses de vida, teria 30% de sua dieta formada por carne humana. Este leão é o que apresenta sérios defeitos nos dentes e teria sido o principal matador, e o outro deve ter se acostumado à carne humana ao partilharem a presa.


Outros pesquisadores ofereceram hipóteses para explicar o comportamento dos dois leões:

- A eclosão em 1898 de uma doença (Rinderpest disease) teria dizimado as presas usuais dos leões (herbívoros selvagens e gado doméstico), obrigando-os a procurar outra fonte de alimento.

- Os leões teriam se acostumado a encontrar cadáveres nas imediações do vau do Rio Tsavo. Caravanas de escravos vindas de Zanzibar passavam rotineiramente por ali.

- Cremação incompleta praticada por trabalhadores hindus da ferrovia. Os leões se habituaram a procurar os corpos e desenterrá-los.

- Outra hipótese era de que os leões era velhos, e por isto mais "irresponsáveis" e ousados. Não tinham mais medo de atacar.


- Um dos leões tinha os dentes severamente danificados (já mencionado). Nem todas as presas naturais dos leões se limitam a fugir, algumas revidam o ataque. Girafas e zebras podem dar coices extremamente violentos, as zebras podem galopar e escoicear ao mesmo tempo (ver imagem). Um leão com a mandíbula fraturada é um leão morto, ele morrerá de fome. O leão FMNH 23970 pode ter levado um coice e ficado com os dentes defeituosos. 

Quanto ao filme “A Sombra e a Escuridão” (“The Ghost and the Darkness”, 1996), considero-o um bom ótimo filme de aventura, com ótima fotografia e boa trilha sonora. Mas não é fiel aos fatos narrados pelo Cel. Patterson em seu livro “The Man-Eaters of Tsavo and Others African Adventures”, publicado em outubro de 1907, por uma questão narrativa. O caçador profissional vivido por Michael Douglas jamais existiu, por outro lado, o vagão-armadilha foi realmente utilizado e falhou. O ataque ao hospital aconteceu. 

 Os leões treinados Bongo e César, usados no filme, também aparecem em “George of the Jungle” de 1997, e são leões com juba, ao contrário dos originais. Acredito que a produção não tosou a juba dos leões para as filmagens porque achou que o público não aceitaria bem a imagem de leões sem juba. 


 A questão da falta de juba tem sido estudada, e causas como desequilíbrio hormonal (testosterona), parasitas e alimentação foram avaliadas. Um nível excessivo de testosterona poderia provocar um efeito similar à calvície nos leões e torná-los mais agressivos. Há inclusive casos documentados de uma situação oposta: leoas que desenvolveram jubas por desequilíbrio hormonal.

 O livro do Cel. Patterson tornou-se de imediato um best-seller sendo reeditado duas vezes ainda em 1907, todos os anos de 1908 a 1914, e depois em 1917 e 1919. Isso deve ter-lhe rendido um bom dinheiro, e Patterson ainda vendeu em 1924 as peles e os crânios dos leões ao Field Museum de Chicago, por cinco mil dólares.

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