FRANCO ATIRADOR ( DEER HUNTER .1978) - REVISITANDO CLÁSSICOS
Operários da Pensilvânia são convocados para lutar na Guerra do Vietnã e voltam traumatizados. O filme é uma crônica da vida do grupo que divide a amizade e as alegrias antes da guerra, o sofrimento durante a luta e o pesadelo psicológico no retorno.
FICHA TÉCNICA

ANÁLISE
A primeira hora inteira é dedicada a retratar o meio de vida daquelas pessoas, imersas numa tranquilidade quase frugal. As risadas na saída do trabalho, a cerveja no fim do dia, correr rua abaixo pelado na festa de casamento do melhor amigo — cenas de uma realidade que já nasce nostálgica (e por isso mesmo, condenada). Nesse contexto, a noção de morte que existe para Michael e seus amigos é tão distante e ingênua quanto uma brincadeirinha irresponsável com o carro, ou uma caçada de fim de semana. E há beleza nesse ato de matar, que se o grupo de amigos só conhece como esporte, Michael conduz como a um ritual.
Segurar a arma na mão e ser capaz de destruir algo que se criou espontaneamente, de perturbar a ordem intocável da natureza, é o que atrai e o que ilude Michael. Uma trucagem de controle. Cimino trata, em cena, de contradizer esta impressão e revelar o mecanismo ao absorver panoramas inteiros para dentro de sua lente, filmando o processo da caça não como uma ação artificial, mas como algo belo e orgânico, registrando a movimentação do homem e seu rifle (agora extensão de seu corpo) como um mero elemento compondo o organismo da paisagem, e portanto, sob a perspectiva adequada, um objeto a mais que se enreda na cadência natural das coisas. Envolto, não intervindo.
Os planos, que começam amplos e longitudinais como se tentassem abraçar de uma só vez a lassidão una da montanha, vão se fechando à medida que o predador encurrala sua vítima. O tiro é seguido de um close que decodifica para o espectador o prazer inominável de Michael, uma sensação que, a partir dali, estaria perdida para sempre.

Os planos, que começam amplos e longitudinais como se tentassem abraçar de uma só vez a lassidão una da montanha, vão se fechando à medida que o predador encurrala sua vítima. O tiro é seguido de um close que decodifica para o espectador o prazer inominável de Michael, uma sensação que, a partir dali, estaria perdida para sempre.
Cimino trata dessa transição com uma dor tateável. É assim à noite, no bar, enquanto um deles toca ao piano e todos são paralisados por um último momento de beleza, velando o modo de vida que conhecem e a si próprios, enterrados para sempre nesse pequeno espaço de tempo antes de terem seus espíritos estilhaçados pelo tiro que falhou na roleta russa, como o disparo simbólico de Elem Klimov em Vá e Veja (Idi i smotri, 1985), gatilho puxado pelo próprio Cimino em um corte que é um rebentar de barbante, um rapto; que extirpa os personagens de suas vidas e os joga na selva como quem é jogado de um veículo em movimento.
O efeito que Cimino pretende é o do choque; do contraste total de ritmo, de montagem, de narrativa. A câmera, que antes movimentava-se com uma leveza quase soporífera, agora agita-se, espreme-se entre estranhos, enfia-se em frestas e espia a ação pelos espaços que consegue arranjar. Os ângulos são errados, os planos inadvertidamente obstruídos. O efeito da queda na selva é o atordoar de uma bomba que explode e de uma bala que passa rente aos ouvidos. Mal sabemos onde estamos, o que está acontecendo, quem está sendo morto e quem está matando.
Quando a ação volta a um ritmo mais ou menos discernível, já estamos presos em uma jaula aguardando o chamado da roleta, tribunal do acaso, o mais maligno e inapelável dos deuses. É a descoberta da impotência absoluta e da submissão ao fatalismo da vida que dita este rito de passagem para Michael, Nick (o monstro Christopher Walken) e Steven (John Savage), demonstrando com dolorosa clareza que a ilusão do infinito, aquela própria da perspectiva juvenil, havia chegado ao fim, e que nada nunca mais seria como antes.

Em solo americano, o pós-Vietnã é apenas uma semi-vida, e o mundo como costumava ser surge feito um sonho do qual se esquece ao acordar. Assim como Pat Garrett sabe que a morte de Billy the Kid é por extensão a sua (Pat Garrett & Billy the Kid [idem, 1973]), como Eastwood que se despede e se retira solenemente das telas em Gran Torino (idem, 2008), ou como o triste discurso de Tommy Lee Jones a respeito do sonho com seu pai em Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men, 2007) (já não por acaso tudo sempre volta ao western e a essa sua estranha ligação com a morte), Michael compreende no momento da extinção que a cidade para a qual voltará é agora e para sempre uma cidade fantasma. É essa perda de identidade e a duplicidade do tiro de Nick que selam também o destino de Michael. É por essa ligação imanente entre os dois, partes indissociáveis de uma só concepção de vida, que ele retorna a Saigon para buscá-lo. Há no resgate uma última chance para recuperar o que havia se perdido, e há nesse disparo um nexo apocalíptico, um impacto que sentencia também Michael à morte, como a bala no espelho ao final de Pat Garrett.